Geleia de Menta

Blog/newsletter sobre tecnologia com perspectiva humana

Hegemonia Pelo Design

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obs. inicial: Como foi definido via votação que a newsletter será(/já é) quinzenal, resolvi fazer um texto bem maior, espero que se divirtam :-)


Não faz muito tempo que ouvi falar de Marshall McLuhan e de sua célebre frase “o meio é a mensagem”, essa frase tão curta e que guarda em si pensamentos tão amplos me fez pensar muito sobre a questão de design e sobre a forma como interagimos, principalmente nas redes sociais que concentram tanto os acessos quanto nossa atenção. Eu já tinha sentido de alguma forma a mensagem transmitida pelo próprio meio: a urgência dos assuntos do momento ou das postagens de outras pessoas, figuras públicas com conteúdos planejados por uma assessoria voltada para redes sociais, empresas fazendo campanhas publicitárias, etc. Há inegavelmente algo de urgência e imersão no próprio conceito de feed de notícias que é potencializado pelos algoritmos, mas quanto mais eu penso sobre o assunto, mais essa urgência e efemeridade me parece ser só a camada mais visível da coisa. Ainda não sei teorizar a extensão do impacto dessa imersão mas acho que falar sobre hegemonia pode ser um bom começo.

Hegemonia pela cultura

O conteúdo desta newsletter dessa quinzena nasceu quando eu vi uma aula da economista Maria da Conceição Tavares disponivel no youtube tem um momento que ela fala que a hegemonia não se dá apenas pela economia, precisa também ocorrer pela cultura. Sei que os exemplos mais comuns são sobre filmes e outras produções audiovisuais mas mais uma vez, acho que essa é só uma camada mais vísivel, fácil de identificar. Me preocupo mais com o pensamento neoliberal, como é que empresas como o facebook e o twitter mudaram nossa forma de interagir uns com os outros e levaram sua cultura para fora dos aplicativos, além de obviamente serem peças-chave em campanhas de desinformação.

Sabemos muito bem que a internet não é apenas uma rede de computadores, falar assim faz parecer que existe uma igualdade utópica entre cada coisa que existe na internet, sejam sites, blogs, canais em diferentes serviços de streaming de vídeo, etc. A internet tem territórios mais ou menos bem delimitados, muitos espaços privados (as redes sociais que tantas pessoas e empresas usam para divulgar seus produtos e serviço ao grande público são espaços privados altamente limitados como forma de forçar a compra de recursos como boosts de visualizações para seguidores e coisas do tipo). Se cada espaço privado tem sua própria economia e espaço definido, uma população de “habitantes” frequentes e em alguns casos até algo similar a moeda própria e taxas que se assemelham a impostos, é absolutamente natural comparar tais ambientes fechados majoritariamente autoregulados a Estados.

E se é relativamente comum, especialmente entre programadores, comentar sobre o óbvio mas sem deixar passar um pouco de surpresa como “porque é que o whatsapp mesmo sendo muito mais limitado que os concorrentes se tornou tão popular mesmo existindo aplicativos com mais recursos na mesma época que ele foi lançado?”, penso que a resposta está pelo caminho da cultura e consequentemente pela formação da hegemonia, afinal os impactos passam necessariamente pela mudança de hábitos, pela forma de se trabalhar, pela dependência que atualmente todos nós temos dessas empresas em maior ou menor grau tamanho é o seu uso em absolutamente todas as esferas da sociedade ainda que nem todos sejam usuários dos serviços dessas empresas diretamente. O caos e a enorme quantidade de notícias sobre o desespero quando os serviços do facebook ficaram foram do ar são perfeitos indícios de tudo isso.

Hegemonia segundo Gramsci

A hegemonia não ocorre apenas pela economia ou forças armadas, o pode de uma classe dominante ou de um país sobre outro se estabelece também a nível cultural e este é um intrincado processo que não ocorre de um instante para o outro, já que significa acima de tudo que sua visão de mundo seja assimilada e reproduzida. A grosso modo é assim que Gramsci[1891-1937] compreendia como é possível que as idéias de uma classe dominante se espalhem pelas demais classes ao ponto delas as reproduzirem, mas para entender melhor a abrangência e os mecanismos por trás disso, preciso detalhar alguns coceitos:

Antonio Gramsci considerava que toda e qualquer pessoa tem a capacidade de pensar e sendo assim, de produzir filosofia na medida que compartilha uma linguagem, participam do senso comum e constroe, à partir do convívio social e consequentemente, a partir da comunicação entre si, de uma concepção de mundo. Só que esta concepção, a cultura, não é algo necessariamente consciente, discutido com argumentos ou qualquer outra coisa do tipo, muitas vezes são apenas crenças que se espalham e terminam por se integrar à visão de mundo daquela sociedade.

Ao final dessa newsletter, entre os links que recomendo, tem um artigo que dou especial destaque, que afirma:

“A hegemonia é, portanto, a orientação cultural, a direção, a dominação e a manutenção do poder exercido pelas classes dominantes através da combinação da força e, sobretudo, da persuasão, da elaboração do consenso ativo para fixação de significados sociais, crenças e variadas formas de construções simbólicas, os quais, dialeticamente, também determinam a dinâmica da infraestrutura econômica. “

Olhando dessa forma, fica claro porque sentimos a obrigação de usar redes sociais, porque se criou esse consenso que sem uma conta no LinkedIn não é possível conseguir um emprego e também porque achamos que todo o mundo está no Twitter, há um sistema de crenças que assimilamos e reproduzimos e há um grande investimento por trás para que seja assim, afinal o modelo de negócios e portanto, a sobrevivência e o lucro dessas empresas, dependem dessa percepção pelo seu público-alvo.

Atualmente com o ambiente tão tóxico em ambientes virtuais, com influencers sobre os mais diversos assuntos muitas vezes substituindo os velhos conhecidos “especialistas” que apareciam nos jornais dizendo coisas como “em java se programa arrastando coisas”, mas principalmente, com a interminável comunicação como se as conversas nunca acabassem e através das redes sociais e aplicativos de mensagens, permanecemos em contato com todos os tempo todo e a qualquer hora recebendo continuamente diversos pareceres de diversas fontes sobre como é o mundo e nosso lugar no mundo. Então, se a comunicação é tão central na formação do consenso e consequentemente na cultura, é absolutamente esperado que existam tantas pesquisas sobre o que chamam de bolhas ideológicas, não só pela nossa tendência de nos aproximar de quem pensa semelhante a nós mas também pelos onipresentes algoritmos, mas aqui eu realmente gostaria de ir por um outro caminho: como as empresas donas de redes sociais e aplicativos de mensagens formam sua hegemonia.

Caminhos da hegemonia

Entre os intricados caminhos do processo hegemônico, é necessário passar pelos instrumentos usados pelas classes dominantes para fazer com que sua visão de mundo seja assimilada pelas classes dominadas. Mas antes de prosseguir eu gostaria de fazer um pequeno recorte: quando falo de classes dominantes, me refiro especificamente a grandes grupos empresariais como as big techs, os bancos, as mineradoras, etc.

Gramsci separa o papel das forças políticas e forças policiais de instrumentos mais… persuasivos, elencando instituições como os colégios, a imprensa e as igrejas entre outras que servem para elaboração e/ou difulsão da ideologia das classes dominantes. Se os legisladores criam leis que favorecem o pequeno grupo dos super ricos, seja através da má distribuição de impostos ou através de diminuição das responsabilidades com os trabalhadores, nós aceitamos e até mesmo defendemos tais ações unilaterais pois assim aprendemos ser o certo, ou seja, toda a nossa jornada quanto indivíduos sociais nos fez assimilar e tratar como nossa a ideologia/visão de mundo das classes dominantes ao ponto de defender seus interesses como se fossem nosso.

Logicamente não há passividade, se há um processo hegemônico, há também processos contra-hegemônicos, da mesma forma que diferentes grupos com diferentes interesses agem cada um a seu modo na disputa por tornar a visão de mundo dos consumidores, contribuidores, trabalhadores e até concorrentes, alinhadas aos seus interesses. Mas deixarei esses movimento contra-hegemônicos ligados à internet para outro dia, tenho muito o que dizer sobre outras formas de pensar a internet e existem muitos movimentos até que bem organizados neste sentido.

utopia e distopia

E é justamente neste ponto que chego nas redes sociais, afinal há muito tempo que já as compreendemos como espaços de disputas políticas e certamente os exércitos de bots da extrema direita contribuíram muito para isso. Só que mais do que apenas disputas entre humanos e bots de forma direta, mais do que a força dos algoritmos em direcionar conteúdos, a organização das páginas, detalhes como frequência de atualização e disposição dos recursos, nos contam de forma mais sutil o ideal da empresa por trás, podemos assim inferir e muitas vezes compreender de forma quase que integral as narrativas utópicas contidas na ideologia por trás do design assim como suas consequentes distopias.

Costuma escapar, principalmente aos desenvolvedores, esses detalhes do poder da comunicação na experiência da pessoa que será a usuária do programa que está sendo desenvolvido: não só as limitações de formatação, apresentação de links, recursos como curtidas e formas de organizar os comentário não apenas apresentam recursos aos usuários, mas determinam os limites e o direcionamento de suas ações, criando assim padrões de interação e consequentemente padrões de comportamentos estimulados enquanto outros comportamentos são reprimidos pelos próprios recursos disponíveis. Não é de se espantar nesse contexto que de tempos em tempos surjam experimentos como do instagram ao deixar de mostrar os likes dados às postagens e seus impactos na experiência de quem utiliza esta rede social onde a cultura tão personalista voltada à promoção pessoal norteia a rede.

Não tenho o objetivo de dizer a utopia por trás de redes como o LenkedIn ou Twitter (e na real, acho que é impossível uma pessoa não entender a distopia que é o LinkedIn se não se estiver tão imersa em mensagens rasas de autoajuda com “lições” neoliberais que nem mais consegue saber o que é real ou não). Quero apenas apontar caminhos para se perceber criticamente o design desses serviços e ferramentas que usamos e como a simbiose entre nossa vida cotidiana e as imposições de uso de tais ferramentas e recursos alteram nossa rotina e a forma como se dá nossa relação com os outros, sejam familiares ou colegas de trabalho.

Para concluir, eu gostaria de falar 2 coisas:

  1. Não é à toa que exista essa sensação de se estar trabalhando o tempo inteiro, de certa forma tudo em redes sociais é trabalho de alguma forma, a partir do momento que se estabelece em vez de uma noção de comunidade ou relações recíprocas de amizade se tem um público que é medido pelas interações e a visibilidade é fundamental nisso, o uso da rede se torna direcionado a como a pessoa entende o que faz “sucesso” entre o grupo social que ela faz parte, há pesquisas sobre a tendência ao extremismo e ao ódio postagens que ajudam a compreender essa dinâmica, mas principalmente, na perspectiva das empresas as pessoas usuárias são medidas pelo engajamento e é pela quantidade e qualidade do engajamento que os valores da publicidade direcionada são definidos, então da mesma forma que um programador super explorado se acha o máximo e embarca na onda de ser “omnistack” todo orgulhoso de fazer sozinho o trabalho que seria de uma equipe inteira, as pessoas usuárias também são estimuladas pelas notificações, pela própria cultura de interação e comunicação formada entre seus contatos na rede, e assim ela replica a utopia do “estar sempre conectado” (se lembram do começo do facebook?) o que significa também seguir certo estilo de vida proposto pela ideologia da empresa.
  2. Uma coisa implícita nisso tudo é como o processo hegemônico ataca diretamente a diversidade cultural, o exemplo mais claro é a TV, a exemplo das icônicas novelas da Globo que por décadas definiram padrões de beleza e comportamento à imagem e semelhança da classe média alta e elite econômica carioca (sim, estou falando diretamente das novelas de Manuel Carlos). Outro exemplo muito bom é dos telejornais mas acho que todos a esta altura dos acontecimentos têm inteira noção da capacidade de mobilização política e até de criação de comoção. Já as redes sociais estão mais misturadas às nossas relações pessoais e profissionais, além de cada uma delas ter um “estilo” próprio, que vai do imediatismo e euforia surtada do twitter às grandes lições de superação a partir de momentos tão delicados como pendurar uma toalha no banheiro. Me parece bem clara a capacidade de criar e difundir visões de mundo coesas ideologicamente, coisas como as histórias de “empreendedorismo” de pessoas que ficaram desempregadas e vão vender pipoca na parada de ônibus e coisas do tipo que aparecem nos jornais da Globo na hora do almoço como se fosse uma melhora de vida através do espírito empreendedor e meritocracia em vez de ser o que é: um sintoma do empobrecimento da população e do desemprego. Essa distorção é bem característica disso de estar imerso numa cultura, afinal a forma como o mundo é compreendido passa necessariamente pela visão de mundo assimilada.

Caberiam várias outras notas com exemplos e consequências mais visíveis dos assuntos aqui tratados, talvez no futuro eu escreva até mesmo no meu blog sobre algum desses aspectos de forma mais detalhada mas certamente farei outras edições dessa newsletter aprofundando o tema.


Como fiz da vez anterior, eu criei um “channel” no are.na onde estou guardando links sobre o assunto de mensagem e design e com o tempo vou adicionando mais conteúdos. Praticamente tudo o que eu falei aqui sobre design veio do que está neste channel: https://www.are.na/lincoln-de-macedo/mensagem-e-design

Sobre Gramsci, o artigo que me foi mais útil e que é realmente um ótimo resumo sobre os pensamentos dele é este: Martins, Ana Amélia Lage, and Regina Maria Marteleto. “Cultura, ideologia e hegemonia: Antonio Gramsci e o campo de estudos da informação.” InCID: Revista de Ciência da Informação e Documentação 10.1 (2019): 5-24. (recomendo fortemente para quem se interessar em se aprofundar no assunto)

Um vídeo que está no channel que fiz no are.na mas que coloco o link aqui por achar realmente relevante para quem se interessar por entender mais sobre cultura nesse caminho apontado por Gramsci: O Conceito De Hegemonia Segundo Raymond Williams


Até a próxima edição 👋


Se chegou até o final deste texto, espero que tenha gostado. Mas para continuar este projeto de divulgação crítica e política da ciência da computação e outros assuntos ligados à tecnologia sem todo o misticismo comum à publicidade, sua ajuda é muito importante. Faz um PIX 😊
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