Centralidade De Produção
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Este é outro texto em que começo a escrever sem rumo, é que umas coisas vão se acumulando enquanto outras simplesmente aparecem como um grito na sua cara servindo para viés de confirmação, muito especialmente quando é algo que afirma algo completamente oposto ao que, no caso, eu penso. É bem claro a qualquer um que tenha lido absolutamente qualquer coisa em algum texto que escrevi ou até em redes sociais (mastodon), que eu advogo mesmo em favor da descentralização, e isso em muitos aspectos e eu precisaria escrever um livro enorme para elencar tudo, por isso vamos com calma, hoje vou mais uma vez falar de centralização como algo ruim através do viés autocrático das empresas, para isso tenho sim de reafirmar a prática democrática como um caminho a seguir.
parte 1: Que sentido faz descentralizar até coisas como github?
Acho que o caminho melhor para responder isso é questionar a real necessidade de centralização e os jogos de interesse e tecnologia disponível por trás. Isso foi algo até bem discutido em alguns segmentos não-reacionários no meio dos programadores quando a Microsoft comprou o Github por um valor exorbitante, sendo que o Github até agora só deu prejuízo. Ao mesmo tempo que qualquer um veria um mau negócio em comprar algo que nunca deu lucro, outros diriam talvez que fosse um planejamento de longo prazo para quando finalmente for lucrativo, mas indo além do debate sobre possível lucro direto, temos um cenário bem distintos de uma curta resposta binária: se a maioria dos projetos open source estão no github, se a imensa maioria das vagas de emprego para desenvolvedores e áreas correlatas exigem ver projetos já feitos pelos candidatos e os testes passam necessariamente pelo github, então ter controle sobre esta plataforma é ter algum nível de controle sobre todo este universo envolta que tem o github como um dos seus pontos centrais.
Falar de hegemonia é também falar de economia, não só de como filmes hollywoodianos moldam nossa percepção da realidade ou como jornais definem o que são “amigos” ou “inimigos” para nós indo com frequência contra os nossos próprios interesses. O aspecto econômico aqui importa demais, pois nós vendemos nossa força de trabalho, mas esta é uma frase já tantas vezes repetidas que tende a se tornar mais abstrato do que é para muitos (estou me incluindo nisso), por isso vou desenvolver o que todos nós sabemos:
humano-coisa
Primeiro sobre a que trabalho significa neste contexto do que quero falar: obviamente nem todo trabalho é remunerado, e muito frequentemente trabalhamos para nos satisfazer em alguma coisa em algum nível, não é só no sentido de comprar algo com dinheiro adquirido em troca do que fazemos, praticamente todos (ao menos eu nunca conheci alguém faz diferente disso) produz muitas horas de trabalho não-remunerado, seja em redes sociais, fazendo divulgação de projetos e participando ativamente na reprodução da propaganda hegemônica de big techs e/ou algumas de suas figuras messiânicas, seja em conversas dando suporte profissional a outros profissionais usando o seu tempo livre para tornar o trabalhador mais produtivo e feliz em produzir para o patrão ou ainda, indo descansar no fim de semana contribuindo para projetos open source no github e que são usados por grandes empresas que quando muito, investem o mínimo para fazer publicidade de que apoiam o open source. Eu já falei antes sobre como isso da mais-valia sempre se direciona para favorecer big-techs não importando o que você faça, na ocasião não usei o termo “mais valia”, mas tudo era exatamente sobre isso.
Seguindo para apenas 1 degrau abaixo já chegamos em algo ainda mais revelador: Toda essa estrutura que nos motiva a agir de acordo com os interesses do grande capital nos leva a visão distorcida de nós mesmos, nos “coisificamos” ou como Lukács fala, sofremos um processo de reificação, e toda a dimensão de nossa existência vai se reduzindo à lógica do produto, da produção e de mercado, nos tornando produtos conscientes de sermos um produto que precisa ser comprado e por isso nós nos vendemos, pois numa sociedade assim, invariavelmente tudo tem de ser produto, isto está atrelado à própria existência. Não há escapatória para essa engrenagem.
Entendo que à primeira vista a dicussão sobre a centralidade ou não de ferramentas como o github deveriam ser técnicas, mas não é possível separar o caráter político da coisa tendo em vista o alcance e influência, como impacta a vida de todos os profissionais da área e consequentemente os produtos criados a partir das áreas ligadas a computação, incluindo até mesmo outras que se beneficiam de softwares, sejam geógrafos ou médicos. Mas antes de eu falar mais sobre poder e como centralizar ele é tão fundamental nessa linha de pensamento autocrática, vamos ao outro motivo que me fez escrever este texto:
Os caminhos da dependência
O maior motivo de eu ter deixado de trabalhar com IA foram os empregos que tive como cientista de dados, muito especialmente por causa das startups descoladas da realidade, e estar diante de níveis tão extremos de chorume neoliberal me obrigou a seguir um dos caminhos: ou abraçar toda a merda ancap e neoliberal, ou me reafirmar à esquerda, obviamente segui o caminho da esquerda e atualmente espero nunca mais voltar para a área. Seria possível ter aguentado mais tempo? sim mas se eu não tivesse pegado empregos tão ruins e visto de tão perto como é a cultura neoliberal e especialmente o que é um capitalista de perto.
Falo sério, você já viu um capitalista de perto? falo de capitalista de verdade, dono de meios de produção, banqueiros, empresários que ganham vários milhões por mês em “investimentos” e coisas assim. O nível de desumidade das pessoas nessa classe social é inconcebível para nós, pessoas comuns. Os que conheci, enchiam a boca para dizer que brasileiro é tudo ladrão, mas falavam isso principalmente para naturalizar a extrema falta de caráter e até mesmo possíveis crimes que estariam dispostos a cometer. É realmente curioso pensar nisso sob uma perspectiva mais histórica e geopolítica, afinal estamos num país subdesenvolvido com tantas mazelas políticas e sociais deixadas de herança da colonização, e nada representa melhor o extremo da exploração do que ocorreu aqui e em outros países que serviram de colônia para o enriquecimento absolutamente imoral de países europeus, mas esses mesmos que se vêem como a “elite” brasileira, se espelham em colonizadores, idolatram a figura de opressores enquanto se colocam ao centro do conceito de “liberdade” que aqui é subvertido numa crença no direito de oprimir e explorar, enfim, se trata apenas de poder.
Pelo menos aprendi 1 coisa importante no breve contato que tive com capitalistas, que foi justamente quando compreendi o jogo empresarial e político que cria o ambiente das startups: dinheiro é acima de tudo, simbólico. A miséria como estratégia de criar uma mão de obra mais barata e que se sujeite a mais abusos com medo de ser demitida e a fé no discurso meritocrático que fomenta esperanças enquanto realça o desespero, é tudo um jogo para esconder o que importa para o capitalista: poder sobre coisas e pessoas, de corromper qualquer criação humana para seus interesses e fazer tudo girar em sua volta, especialmente a vida das pessoas, e imagino que nada seja mais prazeroso que ver pessoas se humilhando, morrendo de trabalhar para dar o máximo lucro possível a elas, justamente elas cuja menor possibilidade de ter lucro menor durante o ano preocupa bem mais os políticos e economistas do que a fome de mais de 1/3 da população. Para mim, hoje, falar de startup é justamente falar disso e especialmente do mecanismo que torna as startups, startups.
Comecemos então de algum ponto qualquer… um hackaton talvez seja um bom exemplo porque é uma dessas coisas que praticamente joga em nossa cara o que quase sempre se oculta por trás do discurso meritocrático. Tudo é feito para capitalistas, deterem ainda mais meios de produção, e acho que isso resume tudo, já que o objetivo de uma startup é ser vendida de uma forma ou de outra a capitalistas. Os contratos sempre serão tendenciosos, sempre definirão de forma inteiramente injusta quem ficará com os lucros, com o poder sobre o projeto e quem ficará com a responsabilidade de fazer tudo acontecer e que também ficará com, na quase totalidade das vezes, os riscos. Um exemplo muito claro e recente disso foi o edital para jogos casuais feito pela Magalu, onde o valor máximo dado a versões demo dos jogos é de 10 mil reais para o desenvolvimento (convenhamos, completamente insuficiente para 3 meses de trabalho mesmo com uma pequena equipe) e que ainda é algo que vai se pagar sozinho, já que o 70% do lucro líquido vai para a empresa enquanto não recuperar esse valor investido, mas acima de tudo, a empresa terá controle sobre os rumos do desenvolvimento, em troca de fazer publicidade nos meios de divulgação que são da própria empresa, com um custo adicional próximo a zero.
Na prática, tudo o que se busca numa starup nessa busca por investidores, é uma forma de trabalhar para capitalistas sem se considerar um trabalhador e nem mesmo admitir a exploração. Esse caso do edital da Magalu nem é tão ruim assim: 70% do lucro líquido enquanto não completa o valor investido e depois disso 50% ad infinitum, e tendo controle total sobre os rumos do desenvolvimento. Digo que não é tão ruim pois é comum que seja bem pior, e esse é outro problema com o fato de se acostumar à lama, uma lama mais limpa começa a parecer menos lama, muitos até chamariam de água se nunca tiverem visto água. Mas enfim… Estou aqui apenas tentando responder a este toot que vi no mastodon hoje mais cedo:
Este é um assunto que também martela em meu cérebro a um certo tempo, e não consigo chegar em outra explicação que não seja política. Capitalistas têm inteira consciência sobre a qual classe eles pertencem, mas a alienação promovida pelo discurso hegemônico cria um ambiente que desfavorece muitas das chances de buscar o mínimo de justiça na distribuição de renda, e isso inclui meios de buscar autonomia.
Há um fetiche nas startups por parte de capitalistas justamente pelo pouco pessoal envolvido na produção além de estarem, quase sempre, ideologicamente dispostos a aceitar jornadas e condições de trabalho absurdas, grande escalabilidade com o mínimo de investimento em infraestrutura e ainda a falta de regulação sobre muitos modelos de negócios proporcionados pela onipresença dos smartphones com internet em nossas vidas, o que permite níveis nunca antes imaginados de alcance e nível de exploração e isso tudo com uma conveniência a mais: a não-humanidade do algoritmo, que torna nebuloso o fator humano por trás de tudo, pois como eu vivo repetindo, todas essas escolhas que fazem uma pessoa percorrer mais de 80km num dia com uma jornada de trabalho que em outra situação o Ministério do Trabalho consideraria trabalho análogo a escravidão.
Também existe uma das consequências do pensamento hegemônico na criação de estruturas que diferem desta centralizadora e altamente hierarquizada como uma pirâmide onde cada mínimo bloco sustenta o do topo: a crença que tudo só é possível a partir da boa vontade do capitalista, e que portanto sem ser algo alinhado a este sistema que direciona ao acúmulo de capital, é tudo impossível. Este é outro fator interessante nas entrelinhas do que é discutido sobre tecnologia, normalmente pessoas alinhadas ao capital sempre tendem a centralização e a reprodução de engrenagens como de uma fábrica ou linha de produção, neoliberais que se autodeclaram ancaps falam de descentralização mas num sentido claramente centralizador, só que criando um falso inimigo para formar um quase duplipensar ao afirmar como libertadores os que mais oprimem e ao buscar meios de burlar a regulação que pode impedir crises causadas pelas ações irresponsáveis de capitalistas (que em essência tem a irresponsabilidade no cerne de sua loucura pelo lucro infinito) como algo ditatorial. Mas pessoas mais à esquerda e mais democráticas vêem a descentralização como um meio de descentralizar o poder, aumentando a participação popular e ao menos ajudando a diminuir as distâncias entre hierarquias criadas apenas para obrigar seguir a lógica do capital.
Sobre tecnologia e descentralização
Talvez a parte mais complexa, ao menos é o que parece olhando de fora, sobre soluções que passam por tecnologias envolta de computação, seja pensar a nível de arquitetura do projeto, isto é, pensar em como todo o design dos dados a serem manipulados e da aplicação, assim como a comunicação entre servidores tanto possam refletir o caráter descentralizador do projeto quanto não imponham uma cultura centralizadora, e tudo isso sem se perder de seu propósito ligado a confiabilidade, velocidade e disponibilidade. É que a muito tempo temos várias aplicações que usam redes descentralizadas e até que com bastante eficiência, as redes p2p se destacam nisso e vão bem além do torrent, o Beaker Browser e o PeerTube são ótimos exemplos (e tem vários outros exemplos aqui). Outro objetivo dessa complexidade da arquitetura descentralizada, além de compartilhar o poder sobre cada instância/projeto, é baratear os custos ao empurrar para os usuários parte dos custos, o PeerTube é um dos melhores exemplos disso na minha opinião, já que o mesmo usuário que assiste um vídeo, também o envia para outros usuários que estão assistindo, aliviando dessa forma o tráfego de dados do lado do servidor. Mas essa é a parte que apenas parece a mais complexa e difícil, o mais complicado de verdade é a publicidade.
O terreno da publicidade é o que na imensa maioria das vezes determina o alcance e faz com que um programa deixe de ser de um nicho específico apenas entre desenvolvedores ligados a projetos abertos. Mas este é um campo muito longe da realidade de criadores e de usuários, frequentemente com uma linguagem e um modo próprio de enxergar as coisas que muito frequentemente nada tem a ver com a visão técnica ou a visão de negócios sobre o app. E mais uma vez tenho de evocar lembranças que eu queria esquecer para deixar claro o que quero dizer: Na imensa maioria das empresas em que trabalhei (startups), o motivo real de eu ter sido contratado era algo entre uma ação publicitária para investidores e uma crença religiosa na necessidade de usar IA. Não parece mas isso explica muita coisa, primeiro que o trabalho de verdade não importa ao discurso, a qualidade do algoritmo não importa da mesma forma que a qualidade do software não importa. Na cabeça do publicitário, do burguês acionista, etc, o que importa é “tecnologias mais recentes em uso no mercado”, “inteligência artificial” como um termo da moda, importa como isso vai se transformar em campanha publicitária e principalmente, o quanto a escala vai dar lucro mesmo cobrando taxas muito mais altas do que tradicionalmente se cobra, afinal todo o brilho da modernidade servirá justamente para esconder isso.
A publicidade online é justamente dominada pelas big techs, e mesmo sem tratar com elas, a sensação de alguém de periferia (eu nasci e sempre morei numa periferia) ao visitar um shopping classe média e sentir que os seguranças ficam te observando por onde passam. Há uma barreira que começa pela linguagem mas que se extende a todo o conceito de pessoa a partir de classe e origem, tenho certeza que todos que sempre viveram em comunidades e favelas sentem isso ao ter o mínimo contato que seja com alguém de um bairro tido como rico. Pois bem, é com essa diferença que se tem de negociar, e o dinheiro pode forçar uma ação já que capitalista colocam o lucro acima de tudo, mas não dura por que é algo fundamentalmente ideológico assim como os meios de divulgação que vivem em simbiose com o poder hegemônico burguesa. A única solução que consigo imaginar é que para existir aplicativos como os de entrega e outros voltados para recrutamento (tipo LinkedIn) é fazer o que se fazia décadas atrás quando a Igreja Católica e grupos de esquerda faziam trabalhos de base ajudando a organizar comunidades, enfim, para bater de frente com um poder hegemônico é preciso organizar uma estrutura que dê suporte a formação de um poder contra-hegemônico, o MST é um ótimo exemplo disso, mas para chegar nesse ponto, há barreiras para serem destruidas, e nisso aponto desde os projetos sociais que visam ensinar programação para jovens com único objetivo de serem trabalhadores gratos pelo herói-branco-salvador que o ensinou uma profissão para ser precarizado mas feliz em sonhar com a condição futura de tornar ricos mais ricos até a tradicional resistência que se tem na adesão de projetos que não tenham um padrinho político/empresarial por trás, resistência que é tanto fruto dessa percepção depreciativa de seus semelhantes quanto resultado da propaganda e consequente representação de pessoas comuns que não sejam de classe média, frequentemente invisíveis nos comerciais que mostram o público-alvo de tudo o que consumimos. Em resumo, é osso mas dá para superar isso com organização e muito esforço, e isso sim é agir de forma revolucionária.
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar
Da Lama ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi
