Geleia de Menta

Blog/newsletter sobre tecnologia com perspectiva humana

Esgotamento

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Certa vez, a muito tempo atrás enquanto eu ainda usava o Twitter (conta pessoal, não essa voltada para um projeto como agora), havia uma programadora que eu seguia, ela era bem simpática, bem humorada, mas algo sempre me incomodava: ela parecia sempre ocupada com diversas comunidades de programadores e além disso tinha uma atividade muito intensa em redes sociais mas só falava de trabalho, como se vivesse no trabalho todas as horas do dia, ou melhor: como se toda a vida, experiência humana, necessidades, enfim, todas as camadas de nossa existência que nos torna únicos fosse achatada à uma única dimensão: o trabalho. Não que o trabalho a isolasse, mas o trabalho parecia ter se espalhado por todos os aspectos da vida dela, ressignificando e padronizando os assuntos e a forma de se relacionar com todos os demais profissionais/clients/pessoas.

Um dia, ela criou uma conta no Curious Cat e resolvi perguntar se ela não sentia certa falta de humanidade nas relações que ela estabele com todo mundo, se ela sendo vista como apenas “profissional da área de desenvolvimento de software” era como se ela não fosse vista como gente de verdade. A resposta foi que ela tem relações humanas sim, mas apenas com poucas pessoas e que tem medo de expor como ela realmente é em redes sociais porque poderia perder trabalhos. Naquele momento entendi o que ela não disse mas me parecia lógico, obviamente é sobre essa alienação que se trata esse texto.

Sei muito bem que o que vou escrever aqui se aplica a quase todos os profissionais das mais diversas áreas, mas falo da experiência de profissionais da área de tecnologias da informação (o que incluo também cientistas de dados, pessoas que cuidam de servidores e programadores no sentido mais amplo possível relacionado ao contexto), faço isso por alguns motivos:

  1. Conheço de dentro como as coisas são na área, então é sobre a qual mais tenho condições de falar a respeito.
  2. Acho, realmente, que a área de tecnologia é um ótimo exemplo das loucuras neoliberais e discursos de autoajuda (que por si só, já tendem a servir às loucuras neoliberais), basta ver como tudo é meio mitológico: a startup bilionária que nasceu do nada em uma garagem, os “gurus” da tecnologia, a nova dieta da moda no Vale do Silício para aumentar a produtividade e a qualidade de vida passando dias sem comer, etc.
  3. Eu estar cansado de ver nos jornais que “nunca faltam oportunidades de trabalho na área” ao mesmo tempo que vejo amigos trabalhando das 8 da manhã às 2 da manhã para cumprir prazos e outros que sobrevivem de bicos porque empregadores preferem contratar como pessoa jurídica para projetos soltos em vez de contratar com carteira assinada, e ainda afirmam: “só lido com empreendedores”. O processo de precarização na área está muito avançado e até muita gente prejudicada por este processo parece feliz com isso.

Acho que caberiam mais coisas, como a forma como o estilo de vida é vendido através de uma estética que nunca passa da adolescência (olha que legal: tem um PS5 no escritório!), mas essas três justificativas me parecem ser o suficiente, especialmente a 2ª por abranger o aspecto antropológico da coisa ao ponto do videogame no escritório ser apenas consequência de algo que está entranhado na linguagem, no assunto das conversas, nas atividades em redes sociais, enfim, em todo o estilo de vida das pessoas imersas nesse meio.

Explorando a paixão

Quando comecei a programar e entrei numa comunidade de programadores muitos anos atrás, senti certo impacto com o fato de tudo ser tão passional, criticar uma framework ou linguagem de programação vista como diametalmente oposta à da sua comunidade era mais do que um ataque fervoroso, era uma reafirmação do seu lugar em meio àquela comunidade e isso não tem nada de técnico, se formos olhar as coisas de forma técnica é mais que inteiramente óbvio que há espaço para todos pois linguagens de programação, frameworks, etc. São criadas tentando preencher lacunas deixadas pelo que existia antes, e que além disso não há nada perfeito, afinal as atualizações sejam para corrigir falhas ou adicionar funcionalidades sempre existem, havendo perfeição ninguém mexeria em nada.

Ainda assim, há este enorme esforço para dizer que é tudo perfeito, está tudo bem, tal ferramenta é perfeita e dá conta de tudo. Comecei a falar disso também porque senti vontade de contar um causo que ilustra bem essa mistura da personalidade que a pessoa construiu para si com as ferramentas de trabalho que usa: num antigo emprego eu estava conversando com o CTO e outros programadores sobre os bancos de dados que seriam usados no futuro data lake (basicamente: como trabalhar com dados exige uma série de processamentos para cada tipo de dado de entrada, que pode ser desde fotos de documentos até dados cadastrais, além de exigir o armazenamento de dados de cada etapa do processo de treinamento dos algoritmos e armazenamento de dados sobre o seu funcionamento já em produção para ir medindo o quanto ele está adequado à realidade), obviamente eu precisaria de mais de 1 banco de dados para lidar com tantos usos diferentes de informações em diferentes formatos. Eu explicava cada etapa de 1 dos algoritmos que seria utilizado numa das aplicações. Só por eu ter dito que eu em tal parte eu preferiria trabalhar com um banco de dados SQL (isto é, como uma grande tabela onde para mim seria melhor para filtrar os dados nas buscas e exportar já num formato com os tipos certos para serem lidos pelo algoritmo), um dos programadores se revoltou e começou a defender o MongoDB aos gritos, ele estava completamente fora de si só porque eu ia usar um banco de dados que não era o preferido dele.

Há uma máscara técnica que esconde a passionalidade da coisa, é como se estivéssemos todos tão presos às ferramentas e a este ideal de profissional que há envolta das comunidades ligadas às ferramentas, que ao se falar de uma linguagem, de um banco de dados, mesmo que de forma técnica, nos atinge diretamente ainda que a gente tente defender aparentando razões técnicas.

Mas essa máscara técnica tem sua relevância nas relações sociais ligadas a um meio técnico da mesma forma que uma máscara culta/intelectual tem sua relevância nas relações sociais ligadas a um meio acadêmico, por exemplo. O que me parece é que essa estética tenta embasar o que é afirmado de forma inteiramente passional e um tanto quanto psicológica e isso se junta a um aspecto que está no coração do ideal que se tem sobre ciência e em especial sobre computação: o nerd inteligente que sabe de tudo. Antes de continuar eu gostaria de dizer que sempre odiei The Big Bang Theory por causa da forma como isso é reforçado, com certeza já deu pra entender meu lado a esta altura do texto. Estamos sempre falando de tipos irreais de gente.

Hora do mergulho

Não há como fugir do fator “imersão, pois ela é tanto consequência quanto causa, talvez a melhor forma de explicar a força da imersão seja considerá-la o motor para um sistema reatroativo, quase como o ciclo que uma pessoa deprimida fica presa: está mal, então se isola de todos buscando se sentir mais segura, mas por se isolar tanto acaba afogando ainda mais na depressão e aí se isola ainda mais. Em ambos os casos é como um comportamento abscessivo, uma compulsão em meio a um labirinto que, por mais que corra, todas as paredes são iguais e só se enxerga mais do mesmo na esperança de ter uma saída à frente ou, mais frequentemente, chegar a um lugar seguro, que pode ser qualquer coisa mesmo, até uma parede que pareça mais confortável. Em ambos os casos também tem essa busca por pequenos prazeres momentâneos que aliviam toda a pressão por alguns instantes e que parecem indicar não haver problemas, mas a diferença mesmo está no contexto já que pessoas deprimidas são alvos de campanhas como o Setembro Amarelo e é comum amigos e parentes se preocupares, muitas vezes estimulando a mudar de ares, interromper esse ciclo autodepreciativo até mesmo chegando ao ponto de acabar brigando enquanto o meio de trabalho estimula a se afundar cada vez mais, fazendo até parecer que não existe outra alternativa, outras escolhas, outro mundo possível e pior, com toda a propaganda envolta quase que gritando ou enfiando no cérebro a idéia de que é tudo o que é preciso para ter sucesso é ser produtivo, fazendo com que a produtividade pareça ser um meio para se chegar ao “sucesso” que aqui se confunde com “felicidade”. Há um ideal de ser humano, de sociedade e até de economia projetado nesse comportamento doentio.

Mais uma vez preciso recorrer ao conceito de biopolítica, a política que domina todos os aspectos da vida, e portanto define corretude até de coisas que deveriam fugir a este espectro, como é o caso que falei lá no começo deste texto, o que fazemos de nossas contas em redes sociais. Falo disso porque é bem emblemático quanto ao significado de ser profissional, se formos pensar na época de nossos pais e avós, seria considerado talvez loucura se entregar tanto ao trabalho ao ponto do trabalho abranger todos os aspectos da vida, mas hoje isso parece ser o mínimo esperado quando a forma como se pensa o profissionalismo atualmente projeta nos profissionais uma perspectiva inteiramente inumana e usa as redes sociais para explorar aspectos não-profissionais, mas fundamentalmente morais e ideológicos.

Todos nós sabemos que pouca coisa talvez consiga ser mais ideológico do que se mostrar não ideológico, isso também é uma ideologia e já conhecemos muitos que se dizem outsiders o suficiente para saber o que isso realmente significa. Como o acho que finalmente finado Escola Sem Partido (nunca mais ouvi falar disso, ainda bem! Espero que tenha morrido mesmo) que era inteiramente partidário. Este é um aspecto importante do pensamento hegemônico: pela cultura os grupos dominantes replicam sua visão de mundo até o ponto de fazer com que os grupos dominados defendam as visões de mundo que não são suas e até mesmo joquem contra si próprios e aí aceitamos ser PJ ganhando menos que um técnico mesmo quando o trabalho exige bem mais qualificação e possibilitamos lucros inimagináveis para nós, simples forças de trabalho.

trabalho emocional

É verdadeiramente lógico que um software não vai resolver sozinho milagrosamente todos os problemas da humanidade e que aplicativo nenhum para celular vai fazer as pessoas viverem mais felizes, mas ainda assim há esse discurso mantido por todos os lados, da tecnologia como algo messiânico e salvador enquanto os programadores e cientistas de dados se vêem como sacerdotes ou até alguma espécie de divindade que molda o mundo à sua vontade. Enquanto isso a desigualdade cresce, as exigências se tornam cada vez mais absurdas enquanto a pressão vem por todos os lados: é impossível não se comparar a cases de sucesso nos eventos da área, onde tudo parece tão fácil e simples, onde todos parecem fazer de tudo menos você. Chega a ser engraçado, e tem algo até que bem teatral nessa distância entre o discurso e a realidade, entre o que se mostra e o que se é (afinal, quem nós somos? e como verdadeiramente estamos?).

Tenho me preocupado muito ultimamente sobre o que é isso de ser saudável quando tudo parece tão doente. Quando eu estava realmente mal de saúde pelo excesso de trabalho (há uma reação biológica causada pelo estresse contínuo que realmente merece atenção 1) e com a imunidade extremamente baixa ao ponto de ter de me afastar de diversas atividades que eu estava envolvido simplesmente por tão ter mais condições de me dedicar a tanta coisa, me vi obrigado a refletir mais sobre o rumo que eu estava seguindo, muito do que expressei aqui neste texto veio daquela época. Admito que me sinto agoniado vendo amigos indo pelo mesmo caminho da exaustão. Há um fator de saúde pública aqui que não é devidamente explorado porque ainda não impacta (ao menos aparentemente) a economia, mas não tem como uma pessoa ser produtiva de verdade seguindo um ritmo insano de trabalhar mais de 16 horas por dia, mal dormir, se acumular de trabalho até na folga (veja quantos programadores fazem projetos com programação nos fins de semana e vão para eventos só falar sobre trabalho), beber café e energético até sentir mal-estar no coração (e isso ainda virar meme). Eu entendo que a piada muitas vezes é crítica, outras vezes quase como um grito de desespero, mas também é necessário colocar o dedo na ferida e fazer sangrar onde a dor é mais sentida: na lógica do lucro, nós, como trabalhadores, só valemos o quanto lucro podemos dar, e se em todas as horas do nosso dia estamos ocupados pensando em como sermos mais lucrativos, melhor para quem lucra com o nosso trabalho.

Alguns dias atrás uma amiga me falou sobre o trabalho emocional2, e como tudo isso que eu conversava sobre o absurdo que foi ocorrer já com 2 amigos meus terem perdidos trabalhos puramente técnicos onde tudo indicava que foi por motivos ideológicos, e falo isso não apenas no sentido de esquerda vs direita, falo nesse sentido amplo ligado ao estilo de vida da pessoa, à sua linguagem, ao sua cultura, enfim, à sua visão de mundo. Em ambos os casos a vida deles nas redes sociais foram verificadas e aí, à semelhança do julgamento que ocorre em O Estrangeiro de Albert Camus, quando o réu não é julgado pelo que fez, mas sofre um julgamento moral por algo que nada tem a ver com o crime cometido, os mitos sobre alinhamento à visão da empresa mantidos pelos setores de RH que tão frequentemente se percebe pelo LinkedIn a replicação de falácias de coaches, fizeram a vez do juiz parcial que julga moralmente e não tecnicamente.

Esta seleção que nada tem de natural, ao contrário do que afirmam os seguidores da meritocracia que apenas tentam calar a boca de todos com um “não reclame, trabalhe!!!”, se baseia em escolhas puramente ideológicas (no sentido de lógica das idéias mesmo), e projetam sobre a pessoa algo inteiramente inumado, que para se adequar a esses preceitos e se sentir aceita, ou seja, ser vista pelos empregadores como alinhadas ao que eles imaginam ser um funcionário ideal, se vêem forçados a fazer essa violência conceitual quase com a mesma força que o duplipensar que Orwell escreveu no livro 1984, onde ele dizia algo como, que o duplipensar era afirmar como verdade o que se tinha inteira consciência que era mentira. Da mesma forma, há essa violência em se adequar mesmo indo contra o que sabe ser prejudicial a si.

Um tempo atrás vi esse acima sobre ilustradores de animes e minha identificação com minha vida como infoproletário foi imediata, ambos os trabalhos podem se resumir a dar vida à imaginação, materializando o que é inteiramente abstrato. Nós estudamos lógica, matemática, algoritmos, estrutura de dados, etc. Ilustradores estudam perspectiva, anatomia, semiótica, etc. Há diferenças no espectro de conhecimento mas ainda assim damos vida ao que imaginamos, criamos nossos mundos através de nossas artes, como não se envolver emocionalmente com isso? Nós todos confundimos nossa identidade com esses ideais todos que criamos sobre o meio profissional, romanceamos coisas que não deveriam ser romanceadas, passionalizamos demais coisas que não faz sentido serem tratadas assim, somos realmente muito semelhantes.

Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da idéia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”… (Notas do Subsolo - Dostoievski)


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References


  1. [https://www.scielo.br/j/rbp/a/BVdhVdfwm7zhxbLmhbjs8Vv/?lang=pt] 

  2. [https://en.wikipedia.org/wiki/Emotional_labor]