Geleia de Menta

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Fediverso, Federação e Bolhas

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Para falar o que pretendo aqui, tenho de começar citando uma análise curta e muitíssimo precisa sobre um ponto de divergência entre instâncias no fediverso feito pelo Cochise César:

Admito nunca ter pensado sobre isso porque para mim era meio óbvio que o fediverso não é uma coisa só ou um grande espaço público e é essa a posição que defendo aqui: instâncias são espaços em comum para seus usuários mas cada uma constroi seu próprio fediverso, ou seja, em cada uma se escolhe a que outras instância irá se relacionar de acordo com seus objetivos, interesses e alinhamentos. Se o fediverso para cada instância é construido a partir dessas escolhas de seus usuários, então o toot público não é tão público assim embora seja possível acessa-lo através de um link, mas automaticamente chega apenas às instâncias que, por qualquer que seja o motivo, têm aquele espaço em comum acessível na linha/feed público de seus usuários.

Entendo que ao falar em “escolha” se pense inicialmente numa lista de instâncias onde se pode marcar para federar ou não, mas não é isso o que acontece. De um lado a busca ativa de usuários por pessoas a quem seguir e os boosts que de certa forma acabam propagando perfis e instâncias ajudam a explorar as instâncias e estabelecer conexões; do outro lado temos uma camada mais diretamente política que é lidar com regras, posicionamentos e relações entre pessoas e instâncias e nisso está incluído tanto a forma como se dá o diálogo quanto o uso de bloqueios e silenciamentos (falo principalmente a nível de instância). Mas vamos por partes, primeiro vamos para boosts e considerações sobre alcance:

grafo formado por círculos coloridos. há 4 círculos numerados no meio e 2 círculos nomeados com letras nas laterais (cada um de um ladoo) dispostos seguinte forma: círculo azul A do lado esquerdo aponta para círculo 1 de cor azul claro, para o círculo 3 de cor verde e para o círculo 4 de cor roxa, o círculo B na cor vermelho escuro aponta para o círculo 1, para o círculo 2 de cor amarela e para o círculo 4. há uma linha pontilhada que parte do circulo 2, passa por B, pelo círculo 4 e termina em A

Esquematização hiper simplificada de instâncias no fediverso onde vemos de cima que o fediverso para A e B são diferentes: para A, 2 não existe e para B, 3 não existe. A linha pontilhada mostra o percurso para alguma postagem pública de 2 poder ser vista por A.

Tendo como referência a imagem acima, para A ver um toot público de 2, além de ter sido publicado com a visibilidade marcada como “Público”, alguém de B precisa compartilhar e alguém de 4 ou de 1 que segue essa pessoa que compartilhou o toot em B precisa compartilhar também para chegar em algum seguidor seu em A, se houver seguidor em A. Essa estrutura tão mais truncada de passagem de informação é um dos muitos motivos de desanimar influenciadores que estão acostumados a pagar para plataformas levarem seus conteúdos a grandes volumes de pessoas. Mas ainda assim, conteúdos mais relevantes costumam alcançar consideráveis pessoas passando por várias instâncias e de forma inteiramente orgânica, ou seja, dependendo do próprio interesse das pessoas que compartilham e a relevância daquele conteúdo, de modo que a costumeira estretégia de criar levantes de indignação falando para a própria bolha e estimular uma reação de alguma bolha oposta para chegar nos trending topics, não funciona.

Se reparar bem, não há como falar num espaço comum a todos, mas espaços em que determinadas instâncias compartilham e cujo conteúdo produzido pelas pessoas que ocupam aqueles espaços privados só chegam lá mediante a escolha de compartilhar algo dessa forma. A arquitetura do fediverso prioriza os espaços privados e é tudo entorno disso. Costumo dizer até que instâncias são como materializações de bolhas e por isso mesmo faz sentido uma pessoa ter perfil em várias instâncias para se conectar com pessoas que vivenciam diferentes aspectos de si mesma, exemplo: se a pessoa trabalha programando, estar numa instância voltada para programadores tendo um forte viés profissional faz sentido, mas a vida dela se resumir a isso chega a ser patológico, se ela também gosta de KPop, tudo bem também ter perfil numa instância voltada para KPop, assim como estar em alguma outra instância só para conversar bobagens com os amigos.

Dierentemente de uma rede centralizada, onde todos habitam o mesmo espaço e portanto, tudo circula mais facilmente, especialmente se o algoritmo assim determinar. Numa rede descentralizada, a propagação é mais lenta e tem alcance quase sempre delimitado pelo perfil das pessoas numa instância, que pode ou não formar uma comunidade, que pode ou não ser temática, que pode ter 1 única pessoa, 100 pessoas ou algumas milhares, e inclusive, que pode ser habitada por bots para divulgação de matérias jornalísticas ou para divulgação dos mais diferentes projetos e também podem ser instâncias de outros softwares diferentes do pleroma e mastodon, como o WriteFreely, Peertube, Funkwhile ou Owncast. Todas falam a mesma linguagem (o protocolo AcivityPub) e seus conteúdos são vistos pelos seguidores como postagens comuns no software que escolheram para interagir no seu fediverso. Eles tem suas limitações, afinal não se espera que perfis de uma plataforma de vídeos como a Peertube ou de streaming como a Owncast se comportem comentando e compartilhando mídias e textos de outras plataformas como o mastodon, sua posição em relação ao fediverso é de bastante passividade ainda que seja possível em suas próprias instâncias favorecer algum usuário (afinal, falamos de sotftwares livres, basta fazer um fork e adapta-lo ao que se pretende), os efeitos ~de tal trapaça~ é inexistente para o fediverso já que nele é tudo em ordem cronológica.

O fenômeno dos influenciadores digitais nasceu com políticas de big techs para favorecer as próprias plataformas injetando dinheiro nelas, incluindo a promoção de figuras que se tornariam celebridades em alguns meios como forma de atrair e manter um público, afinal é tudo sobre consumo. O Google fez florescer os blogs e quando não interessava mais, os matou. Este é um padrão seguido pelas demais plataformas adaptado ao seu modelo de negócio mas que tem como ponto em comum métricas baseadas no alcance e engajamento, ou seja, os likes e comentários são parte da economia das plataformas mantidas pelas big techs, retirando o interesse comercial que se utiliza de uma série de estratégias, muitas delas baseadas no conceito de gameficação, para sistematicamente convencer o usuários a entrar na espiral de imersão nessa cultura egocêntrica (no sentido de centrada no ego, na percepção individual e moldando toda a experiência numa forma de espelho mas com distorções estimuladas pela própria plataforma) que entende cada like como uma prova de reconhecimento, e que conduz a um comportamento tribal e territorialista ao se falar para uma bolha e se reafirmar continuamente como uma de suas lideranças.

Aliás, é interessante notar como na economia que tem na atenção sua matéria-prima, a desigualdade se expressa através da visibilidade, ou seja, enquanto alguns poucos concentram as atenções e suas ações tem um alcance grande, uma enorme massa segue quase invisível e sem voz. E uma forma muito comum de conseguir visibilidade gratuita é incomodar e causar indignação entre os perfis para os quais a atenção converge e assim causar ondas sucessivas de revolta, e no caso do twitter e outras plataformas como o youtube, existe espaço garantido para as falas que geraram maior engajamento. Não preciso dizer como isso ajuda a sustentar a visibilidade de figuras irrelevantes, e pior, tal comportamento acaba se tornando uma forma de entretenimento, fortalecendo o ciclo desse minuto do ódio. Como é possível perceber, tudo isso faz parte de uma dinâmica exclusiva de redes centralizadas que tem nas métricas de engajamento a base de sua economia e portanto, é pela visibilidade que se estabelecem as relações de poder. Numa rede descentralizada nada disso faz o menor sentido.

No Mastodon apenas adms através da conta de administração que tem o recurso de notificar todos da instância, eles têm real alcance garantido ainda que restrito à sua própria instância. Esse é um ponto sensível, especialmente porque não há obrigação alguma quanto a uma instância ser democrática ou não, inclusive pode ser só um projeto pessoal em que se resolveu tornar acessível a alguns amigos que pretendiam acessar o fediverso pela mesma instância, mas também pode ser um meio de ser um influencer nos mesmos moldes de como é numa rede centralizada só que em vez da plataforma ser de um bilionário, é de uma pessoa com tanto ego quanto e que está imersa na dinâmica explicada nos parágrafos anteriores, e nessa mistura entre o papel técnico da administração e o viés pessoal, a instância pode ser uma forma de autopromoção, de mobilização de seguidores segundo seus interesses pessoais. E também, seguindo essa linha de representação de poder, ter um comportamento imperialista sobre outras instâncias próximas na busca de alguma hegemonia ou reafirmação de poder, ou seja: ter uma relação conflituosa e impositiva diante de outras instâncias se torna parte da política da própria instância.

Existem muitos motivos para uma instância bloquear ou silenciar outra instância. A responsabilidade das pessoas que administram o servidor são bem maiores do que garantir de alguma forma estabilidade da instância ou conter excessos de alguns usuários. Também há responsabilidade legal, tendo em vista que todas as mídias das instâncias vizinhas são copiadas para o servidor, então se conectar a instâncias cujos membros espalham mensagens de ódio, expõem imagens e vídeos de mulheres e até crianças vítimas de violência sexual, enfim esses tipos de coisas, é um risco para os responsáveis pela instância e que pode acarretar até em prisão e é por isso que instâncias sem regras ou que defendem a “liberdade de expressão irrestrita” costumam ser bloqueadas preventivamente. Mas em situações bem menos extremas, como uma instância extremamente neoliberal e ancap, se o adm de sua instância se posiciona contra essa ideologia, é natural um bloqueio preventivo para evitar atritos futuros, como eu já disse, ninguém é obrigado a seguir ninguém e como instância, se pode se recusar a interagir com outra por qualquer motivo, incluindo pela manutenção do clima harmônico dentro de sua própria instância.

Existem outras medidas que têm um sentido bem prático, como o silenciamento, e isso é algo que pelo menos até o momento, só adms podem fazer. O silenciamento é como um bloqueio mais ameno, que deixa de ler o feed público mas mantém os seguidores, é bem comum fazer isso quando usuários de uma instância vizinha compartilham um grande volume de imagens e vídeos e um volume tão grande assim pode gerar um custo de armazenamento grande o suficiente para tornar inviável manter a instância. Mas ambas as ações podem ter um caráter temporário sobre um comportamento que pode vir a crescer e se tornar problemático para a instância vizinha como um todo, por isso nesses casos é comum os adms entrarem em contato para saber que medidas essa outra instância estão tomando, e dependendo do caso, podem auxiliar compartilhando sua experiência em situações similares ou até bloquearem definitivamente se perceberem que é inútil qualquer tentativa de diálogo.

Em algum momento certamente vão comparar as instâncias a Estados em relação a controle e domínio sobre território, na verdade está mais para o conceito de aldeias nômades, que se movem continuamente em busca de algum lugar com uma boa vizinhança. Faz sentido serem pequenas, diante da responsabilidade de adms e moderadores, pequenos grupos são mais fáceis de lidar, ainda mais se forem coesos e conscientes sobre o ambiente que compartilham. Nem toda instância é uma comunidade temática mas toda instância, muito especialmente as pequenas, tende a formar comunidades (até no twitter se formam comunidades), obviamente distintas em muitos aspectos entre si e por isso mesmo, uma política de boa vizinhança e diplomacia se mostram necessárias, mas chegar ao ponto de uma instância bloquear outra não é uma ação grave por si mesma, faz parte desse movimento de montar o seu fediverso escolher com que pessoas pretende se relacionar a fim de construir coletivamente o espaço que queremos que o nosso fediverso seja.


Se chegou até o final deste texto, espero que tenha gostado. Mas para continuar este projeto de divulgação crítica e política da ciência da computação e outros assuntos ligados à tecnologia sem todo o misticismo comum à publicidade, sua ajuda é muito importante. Faz um PIX 😊
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