Matrix, Metropolis e a Conciliação
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Metropolis, o filme expressionista alemão lançado em 1927, um dos mais memoráveis do cinema, tem algumas cenas que se fixaram na minha memória de tal forma que ao subir em um ônibus lotado de pessoas exaustas indo enfrentar horas de congestionamento depois de um dia de trabalho, sempre me vêm à tona a cena de abertura com a troca de turnos na fábrica. Também me é muito nítida a famosa cena de Moloch, onde a figura dele se mistura à das máquinas se alimentando de pessoas que seguem como num sacrifício, cumprido de cabeça baixa, aceitando seu inexorável destino. É sempre bom lembrar que o filme é quase uma aula sobre uma das linhas marxistas/sindicalistas da época, esta ainda bastante conciliadora e ligada quase estritamente à luta por condições minimamente humanas de trabalho. É uma pena que muitas discussões feitas naquela mesma época tenha ficado de fora, mas isso não desmerece o filme, que é certamente a obra audiovisual de ficção científica mais influente da história.
Até agora falei em vários posts sobre alguns livros que me marcaram profundamente mas este é um filme realmente necessário de ser citado aqui, porque deixa clara a ordem das coisas: a organização dos trabalhadores e a sindicalização vêm depois. É a partir do sofrimento da classe trabalhadora que a pessoa em condição de proletário se reconhece como tal, mas aqui também cabe uma dúvida, e para essa dúvida preciso lembrar de Bakunin, que em A Ilusão do Sufrágio Universal, afirma que “a diferença de posição leva a uma diferença de perspectiva”, o que me faz pensar também naquele famoso experimento da época em que a psicologia se esforçava por ser reconhecida como ciência na mesma época pós-guerra, onde, com a memória recente do nazismo e do fascismo, a psicologia experimental se destacou em reproduzir situações que evidenciavam, mesmo sem esse ser o objetivo, o que Bakunin afirmou. Talvez o mais notável experimento seja aquele com estudantes simulando serem carcereiros de outros estudantes.
O outro momento de Metropolis que faço questão de falar ainda nesse início de texto é o de Moloch, onde primeiro mostra como pessoas escravizadas sendo lançadas violentamente à morte, mas depois vão os trabalhadores de cabeça baixa, em uma marcha contínua, sem olhar para a frente (o que indica a falta de perspectiva quanto ao futuro), como se estivessem olhando apenas para os seus pés (o que pode indicar a premente necessidade de se sustentar). Eles se conduzem ao sacrifício, ainda que eu não saiba se “sacrifício” seja a palavra certa pois ela tem um sentido religioso em si, de “tornar, pelo ofício, algo sagrado', mas o importante é que eles seguem e suas vidas alimentam as máquinas. Este é um ponto que considero merecer atenção, pois assim como em Matrix, as pessoas servem para alimentar as máquinas, embora em Matrix isso seja resumido na analogia com uma pilha de 1.5v, o sentido da alimentação é algo bem mais amplo do que apenas fornecer energia ao mero funcionamento, tendo em vista que existe todo um ecossistema envolta do cultivo do alimento, e sem o alimento, todo o sistema padece porque não tem como nem se manter (num sentido amplo, não apenas em relação a “ligar”, mas também em não ter meios nem de realizar sua manutenção). É neste ponto que ambos os filmes se aproximam apenas das grandes diferenças de representação de tecnologia e alimentação e até mesmo de sistema: pessoas alimentam as máquinas porque não têm escolhas, estamos todos presos de uma forma ou de outra a um sistema que nos usa, nos devora, nos abate, apenas pensando em sua manutenção. Nós não somos pessoas para o sistema capitalista, nós somos seu alimento.
Sim, falo de capitalismo em Matrix porque há implícita uma luta de classe e também, ao menos a trilogia original, termina com uma conciliação que na minha opinião é algo inteiramente absurdo e insustentável, mas naquele contexto até fazia sentido, afinal “sobreviver hoje para lutar amanhã” é uma estratégia que não envolve novidade alguma, é o que a gente costuma fazer quase o tempo todo já que acima de tudo, se não sobrevivermos, não temos como continuar nossas lutas. Mas não gostaria de me alongar sobre isso no momento, prefiro me manter nisso da luta de classes. Vejamos: em Matrix primeiro os humanos criaram as máquinas, as dotaram de inteligência artificial para que pudesse servir melhor aos humanos mas a ação parasitária e predatória humana, e também por culpa da geoengenharia ao estilo do último episódio de Família Dinossauro, tornou o planeta tão inabitável quanto é sugerido em Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? de Philip K. Dick, o que fez com que as máquinas, dotadas de consciência pelas ações humanas, viram sua consciência ameaçada, e de “classe” oprimida/servil se torna a classe dominante/opressora que agora explora os humanos para que possa manter o seu sistema de sobrevivência. Se antes a humanidade criou as máquinas, tornando-as a base de seu sistema de sobrevivência (tudo dependia de máquinas), agora a situação se inverteu e a sobrevivência das máquinas depende dos humanos que elas criam nas lavouras.
Percebe o ponto que Metropolis e Matrix realmente se diferem? Ainda que em ambos os filmes se busque falar de “sistema” de forma abstrata tendo máquinas como símbolos de exploração e opressão desse mesmo sistema impalpável e quase indefinível, em Metropolis há sim uma classe privilegiada, a classe burguesa que vive na superfície e é a “cara” das maravilhas da civilização e da era tecnológica enquanto a classe operária vive no subsolo. E em Matrix, vemos, através de uma alternância entre classes no domínio territorial do planeta e sua consequente subjugação da outra classe, um confronto quase direto entre humanos e máquinas ainda que exista uma grande massa de pessoas apenas vivendo na matrix enquanto servem de alimento, e o 1º filme nos lembra que há quem esteja bem assim embora exista uma tendência ao filme em relevar a necessidade de consciência de si/de seu lugar no mundo (consciência de classe?) na busca por sua hegemonia mas que ao final adota um tom conciliatório assim como em Metropolis.
A centralidade das máquinas
Eu acho curiosíssimo como há todo um fetiche envolta das máquinas desde os autômatos e revolução industrial. E dependendo de quem fale a respeito, há tanto sentidos negativos quanto positivos exaltados quase sempre com visões utópicas ou distópicas sobre futuro a partir de como as máquinas estão no momento. O simbolismo das máquinas, da idealização sobre robôs, com sua consequente humanização é fascinante tanto do lado da crítica ao sistema produtivo quanto no que realmente é expresso nas entrelinhas pelos mais malucos tecnocratas.
Um dos exemplos mais emblemáticos é o dos ludistas, que atingiam as máquinas como representações da força opressora da ainda nova burguesia industrial que rapidamente adquiriu grande poder político no Reino Unido. Então nesse contexto de transição, onde se transformava radicalmente o paradigma sobre o trabalho. Isto é, o fim das guildas de artesãos e a concentração da produção nas fábricas, onde todo o discurso sobre o aumento da produção (“1 só trabalhador poderá substituir vários outros”) significou uma grande concentração de poder econômico aos donos das fábricas ao mesmo tempo que o trabalhador ganhava menos e trabalhava bem mais. Servir às máquinas nunca significou melhorar a vida de quem trabalha, no máximo significa que quem detém o meio de produção verá seu lucro explodir a um nível que antes ele nem imaginava.
Como é absolutamente óbvio há uma contradição tão absurda entre o que os ludistas faziam e o que se divulgava sobre eles, que chegou até a ser aproveitada pelo Lord Byron no seu primeiro pronunciamento da Câmara dos Comuns em 1812, ironizando:
“Os operários rejeitados em sua cegueira e ignorância, em vez de comemorarem as conquistas em artes tão benéficas para a humanidade, viam-se eles mesmos como sacrificados aos progressos da Mecânica. Na loucura de seus corações, imaginaram que o sustento e o bem-estar dos pobres industriosos seriam objeto mais importante que o enriquecimento de uns poucos indivíduos favorecidos por algum progresso, pelo crescimento do comércio, os quais lançavam os trabalhadores no horror do desemprego e tornavam o operário cada dia menos valioso na hora de contratá-los.” 1
Pureza e religiosidade
Fora do campo do absurdo (como se fosse realmente possível não encarar o absudo), e como quase tudo nas sociedades humanas, ainda há uma dimensão religiosa. Já falei antes, ainda que sem me aprofundar tanto, no conceito de divindade implícito no conceito de IA em Neuromancer, mas há um outro aspecto apresentado em Matrix e Metropolis, que é o do messias. seja o Neo como um super-herói ou Joh Fredersen como uma “elite” sensível que busca a paz e a justiça através de sua “superioridade” e por aspirações românticas. Admito que me irrita esse viés tão subjetivo e de exaltação do amor romântico que cria escolhas burras e suicidas. No momento vou ignorar isso mas esse sentido religioso é realmente digno de nota já que nessa invenção do ocidente, temos uma grande influência judaico-cristã, então pensar em heróis salvadores ou no sacrifício como realmente tornar algo sagrado, e muito especialmente adicionar camadas de moralidade e juízos de valor a posicionamentos, ações e até coisas inanimadas, é algo bem tipicamente religioso.
Álvaro Vieira Pinto fala algo interessante nos primeiros capítulos do livro “O Conceito de Tecnologia, quando cita a forma como os avanços tecnológicos desmistificam a natureza enquanto elevam a compreensão que se tem da humanidade a um status quase divino através da ciência e consequentemente, de sua aplicação. Mas ao mesmo tempo o novo status adquirido é rapidamente naturalizado, no sentido de na perspectiva social, histórica e cultural, ser compreendido como algo da própria natureza. O que antes era completamente externa à humanidade e com o desenvolvimento da ciência e tecnologia, se transforma para caber nos interesses humanos, estes sim, substituem a compreensão original do que era natural.
Estes processos de ressignificação, como tudo o que tem os dois pés na política, não é isento de conflitos e versões. Então nada mais esperado do que também a conotação religiosa envolta das máquinas, que como eu já disse antes, representam simbolicamente as mudanças no trabalho e as relações entre as classes. Nada mais óbvio então do que a classe cujo trabalho perdeu seu valor comercial devido a revolução industrial, demonizar as máquinas no sentido religioso mesmo, como uma artimanha de alguma personificação do mal que tem como objetivo trazer a miséria e a fome às pessoas, talvez até mesmo anunciado e tão esperado fim dos tempos, sendo associada a algum cavaleiro do apocalipse que traz a fome e a peste. enquanto isso:
“O grupo contrário via nas máquinas uma bênção do céu, encontrando com facilidade numerosos argumentos para justificar essa convicção, sem compreender que, quando fazia o panegírico da inteligência humana, estava na verdade empreendendo a defesa de uma classe em ascenção, empenhada na fase mais árdua da batalha pela formação do grande capital.” 2
A necessária crítica a tecologia
Escrevo este texto na semana em que Bezos, o dono da Amazon, postou uma selfie todo feliz enquanto bombeiros buscavam funcionários em destroços de um armazém de distribuição da Amazon depois que um furacão o destruiu e matou 6 pessoas que estavam trabalhando lá, acho que colocar esse link a esta altura do texto já deixa claro o que penso sobre essa tal “conciliação”, que é justamente o mesmo pornto que mais me incomoda nos filmes, e assim… Metropolis ter quase 100 anos não o isenta de minhas críticas neste aspecto porque a produção literária marxista de 100 anos atrás e os movimentos operários da época já eram muito fortes e também buscavam a tomada do poder. 10 anos antes de Metropolis ter sido lançado tinha ocorrido a revolução russa, e talvez justamente por isso que o filme tenha buscado um tom tão conciliador, afinal havia uma forte propaganda anticomunista mantida pelo grande capital que foi amplificada pelo nazismo.
Apesar do que é noticiado sobre sobre movimento operário, e esse viés é realmente uma herança da propaganda contra os ludistas, é isso de falar como se houvesse apenas ódio as fábricas ou não se quisesse trabalhar, ao mesmo tempo que o empresário é uma figura que representa o trabalho como se isso fosse sinônimo de acumulação de capital e é justamente nisso da acumulação de capital que ataco já nessa última parte deste texto, já que é para isso que a tecnologia serve e é pensando nos interesses do capital que toda tecnologia recebe investimento para ser desenvolvida. Obviamente falo de um estado capitalista, porque tudo poderia ser bem diferente se houvesse uma política de investimentos de forma inteiramente republicana (no sentido do que é de interesse público de verdade e não só de alguns que falam como se eles fossem o estado).
Ao apontar críticas a tecnologia, não se critica a ciência embora em muitos casos seja uma crítica a ética da pesquisa, o que se faz na realidade é destrinchar intenções não declaradas mas implícitas nas consequências do que é adotado como intermediário: a máquina, o aplicativo, o algoritmo, etc. Isso é algo presente desde as primeiras distopias, seja com R.U.R de Karel Čapek ou com Nós, de Zamiantin. Este é um ponto interessante que é quase sempre presente nas ficções do tipo, como as máquinas parecem humanas por mais que nos seja limitado falar sobre humanidade justamente por nos faltar conceitos.
Mind, escrito por Alan Turing em 1950 teoriza como seria um teste para saber se uma máquina seria dotada de uma inteligência “humana” através de um jogo de perguntas e respostas. Realmente não entendo porque levaram isso a sério se era só uma introdução ao tema do artigo, mas enfim, há um longo histórico de produções com esse viés e até mesmo pessoas famosas, inclusive no meio tecnológico (não necessariamente especialistas), costumam pregar um futuro fantástico com base nas maravilhas da tecnologia, especialmente usando inteligência artificial (a queridinha da vez, de novo). Penso que esse é essa diferença de perspectiva que fez com que eu escrevesse este texto com uma distância tão grande com o que normalmente se fala dos filmes de Matrix, onde as máquinas, da consciência se emancipam e criam um outro sistema de produção de recursos para sua sobrevivência que tem como base a exploração da vida humana, isso me parece dialogar bastante bem com 1984 de Orwell, naquele momento do livro em que a história é quase pausada para expor as teorias sobre a relação entre 3 classes sociais, sendo que as 2 que estão próximas ao poder, se alternam em golpes e contragolpes.
No caso de Matrix, chama a atenção como tudo ocorre por fora da questão da produção de recursos básicos à sobrevivência, no 2º filme ainda se fala bem brevemente sobre a relação de dependência que humanos tem das máquinas e a dependência que máquinas tem de humanos, mas são sistemas baseados na exploração um do outro que aparentemente são inconciliáveis e aí o final conciliatório como um acordo de reforma e não de revolução, como título do 3º filme indicava: cada classe continuaria na mesma condição, seguindo seu papel naquela sociedade só que, teoricamente, sem pegar em armas para buscar ou manter sua hegemonia, enfim, nada muda a nível sistêmico, que é o que importava. No fim das contas, ambos os filmes, Matrix e Metropolis, tratam de manutenção da ordem social e política, caberia aqui até citar o primeiro discurso mostrado no filme Judas e o Messias Negro, onde Fred Hampton diz que a diferença entre reforma e revolução é que a reforma são mestres ensinando os escravos a se tornarem escravos melhores.
Não é que eu odeie tecnologia, mas…
Comecei a escrever isso aqui pensando em esclarecer que não odeio tecnologia, mas a tecnologia serve a quem a domina, a quem tem os meios de usa-la segundo seus próprios interesses e visão de mundo, e nisso falar de hegemonia ou sobre relações de trabalho importa bem mais do que falar diretamente sobre tal algoritmo ou aparelho eletrônico, eles são uma expressão da ideologia de quem detém os meios de produzir e implementar. A tecnologia só nos servirá se a dominarmos e faze-la nos servir em vez de apenas vendê-la através de nossa força de trabalho quando dominamos a técnica e garanto que há uma grande distância entre dominar a técnica e dominar seu funcionamento em ambiente de produção.
Para que a tecnologia nos sirva, muito do que se pensa sobre seu uso hoje tem de mudar radicalmente, inclusive os métodos de treinamento de algoritmos inteligentes para que sejam mais transparentes e existam protocolos de auditoria, especialmente no uso pela segurança pública e nos aparelhos eletrônicos que usamos e que a cada dia parece ser mais uma parte de nosso corpo.
Eu realmente não odeio tecnologia mas há uma conciliação que me parece inteiramente impossível entre o que meu senso ético diz sobre como a tecnologia deve ser usada e como ela é usada pelo grande capital. São interesses antagônicos de tal modo que qualquer software ou aparelho usado para “beneficiar” o trabalhador, se não for feito seguindo estritamente os interesses dos trabalhadores, certamente ele só aumentará sua exploração e vai piorar sua qualidade de vida, como é o caso da uberização, dos algoritmos que escolhem quem demitir e quem contratar. São lados opostos que estão em conflito pela própria perspectiva em que se encontram. A luta dos entregadores antifascistas importa muito mais que o aumento da franquia de internet para todos os trabalhadores, eles realmente estão lidando com o que interessa: o poder hegemônico da classe burguesa.
