Geleia de Menta

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Redes Sociais E Falacias Estatisticas

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Uma pequena explicação prévia: este é um texto que eu tinha publicado meses atrás no writefreely mas algumas semanas depois devem ter feito uma atualização desastrosa e a vários meses que saiu do ar e do nada voltou agora, inclusive foi do servidor ter caído que iniciei este site. Ficando isso claro, é óbvio que vou migrar os textos que faltam para cá mas farei isso preguiçosamente aos poucos (embora eu já tenha feito um backup de tudo no computador porque aprendi a não confiar mesmo).


Comecei a escrever mas ainda não sei ao certo por onde começar, o que quero dizer ao final é que há uma grande distância entre a percepção das coisas em nossa volta, que acho melhor chamar de “realidade imediata” e a realidade de verdade, que vai além do nosso limitado círculo de contato seja presencial ou online.

Talvez seja melhor começar dizendo que em alguma medida todos nós vivemos em alguma forma de bolha, e isso é algo que parece cada vez mais estimulado seja pela geografia das cidades, as exigências feitas de forma explicitamente indireta no trabalho que sugerem que o certo seria viver inteiramente apenas dentro da área (isso é uma coisa horrível mas muito comum entre quem tem diploma universitário e alguns técnicos) e não posso esquecer daquilo que parece direcionar todos nós de forma nada sutil e de forma onipresente na internet: os sistemas de recomendação.

Habitação, Moradia, Comunidade

Esta parte do texto vai diretamente para moradores de condomínio, especialmente os classe-média.

Todo prédio é como uma ilha, e isso já começa pelo projeto do tal empreendimento imobiliário, onde é definido um público-alvo e se pensa numa faixa de preço que é claramente pensada para determinado grupo social, e a partir desse perfil imaginado de morador é que todo o resto é feito, desde a infraestrutura às vagas na garagem. Desde o princípio o projeto de todo conjunto residencial é feito para agrupar pessoas semelhantes e se não forem todos mesmo semelhantes, os próprios conflitos na convivência vão normalizar a situação, seja tornando a moradia de quem é diferente insuportável naquele lugar ou enquandrando a pessoa no padrão seguido pelos outros.

Algo oculto nessa questão do comportamento é o fator da comunicação: a linguagem que usamos para falar com um vizinho comunica como nos posicinamos em relação a ele mas também marca um ponto num território, indicando limites e muito frequentemente dando meios de entender como funciona a aceitação. E acho que todas as pessoas que chegaram como novatas num lugar onde os veteranos já se conheciam a muito tempo, seja num trabalho ou num curso, entende como o começo é complicado, você se sente uma pessoa inteiramente deslocada daquele meio e tenta entender como os outros pensam, o que une aquelas pessoas, quais os seus trejeitos para que você também possa ser aceita em meio a elas.

A este ponto não posso mais dar voltas em torno da palavra “ideológico” sem me referir a ela, pois ao fim, essas interações comuns ao dia-a-dia formam uma ideologia e falo isso num sentido mais próximo à origem da palavra mesmo, dando forma e uma lógica às idéias, até mesmo à visão de mundo com base nessa realidade que se apresenta envolta da pessoa.

Vamos imaginar que você é uma dessas pessoas privilegiadas que têm um bom emprego que exige especialidade em alguma coisa, não importa se é médico, engenheiro de software, economista ou seja lá o que for, você no trabalho tem contato basicamente com colegas de trabalho, e entre esses a hierarquia importa ainda que outros na mesma hierarquia que você sejam os que você tem mais contato, então há uma predominância de contato com pessoas do mesmo grupo social que você.

Ao sair do trabalho pega o carro e vai para o condomínio onde mora, há um porteiro mas é mantido no máximo um contato visual, se muito um aceno com a mão. No momento vou desconsiderar o uso das redes sociais porque falarei melhor disso mais à frente. De resto as interações da pessoa se dá com os outros condôminos, especialmente no elevador, reuniões e áreas de uso comum, como todos têm a mesma faixa de renda e fazem parte da mesma classe social, é de se presumir um alinhamento nos interesses quanto classe.

No começo do século XX, antes da 1ª guerra, na Espanha surgiu uma teoria pedagógica de fundamentos anarquistas em que se falava de “co-educação”1, que significava basicamente estimular o contato com quem era diferente para aprender também com as diferenças, isso significava colocar meninos e meninas na mesma sala de aula numa época em que ainda o normal era ter escolas para meninos e outras para meninas e os mais ricos tinham apenas preceptores, enfim professores particulares. Também envolvia criar atividades em comum entre alunos de diferentes idades e trazer para sala de aula o conhecimento dos pais dos alunos, cada um com seu trabalho, e integrar os conhecimentos aprendidos na profissionalização com os conhecimentos trabalhados em sala de aula, deste modo não é de se espantar a valorização do trabalho da costureira, do marceneiro, do pedreiro, do serralheiro, etc. Quando conheci esta teoria foi justamente num período de questionamento sobre o sentido do que eu, na época, fazia na faculdade. É que àquela altura tudo reafirmava um único caminho, estava impresso em todas as matérias, em todos os eventos que eu ia, em tudo o que eu tinha de aprender sobre a área, um ideal de profissional, esse fantasma como definido por Stiner me parecia ser o oposto do objetivo dessa teoria pedagógica, me sentia como se estivesse me fechando tanto na área que estava me perdendo da realidade, o que agora vejo que eu realmente estava e felizmente percebi a tempo.

O twitter não valida a realidade

É imensamente natural para todos os humanos identificarem padrões onde até não existem, esse é um importante recurso de sobrevivência, seja em florestas ou em sociedades que vivem imersas nas mais diferentes formas de conflito. É importante reconhecer facilmente em quem podemos ou não confiar e em quem diz ou não a verdade, isso se passa muito além da lógica e perspircácia, há algo bem subjetivo nisso tudo, pois como poderia a vertente semiótica de Peirce: os signos por si só não significam nada, nós é que atribuímos significado, transformando signos vazios de sentido em símbolos que nos dizem algo.

Sapatênis e camisa pólo são símbolos de um grupo de pessoas, usar palavras como “topzera” também, assim como sapato de salto alto com a sola vermelha. No mundo real é fácil reconhecer diferentes grupos sociais pois além da fala, roupas, trejeitos, etc. há questões envolvendo o espaço geográfico (consegue imaginar algum milionário de terno e relógio de ouro no braço andando numa rua de comércio popular?). Essas diferenças, quase todas, entre as pessoas aparenta sumir em redes sociais, onde aparentemente há uma horizontalidade nas relações entre as pessoas, uma democratização do espaço de fala muitas vezes comparado a uma praça pública. Esse discurso utópico era forte no começo, obviamente foi-se percebendo como as coisas são na realidade mas ainda reverbera muito dessa visão tão superficial quando se trata de representação da realidade.

Da mesma forma que no cotidiano nos aproximamos de pessoas que demonstram estar mais alinhadas a nós, nas redes sociais isso não é diferente, mas por termos apenas o texto para nos orientar nos símbolos que identificamos, é justamente os assuntos, as escolhas nas palavras usadas e os links e imagens compartilhadas que nos orientam em relação à geografia da própria rede. Afinal não é de se espantar que uma jornalista que cubra notícias sobre política tenha um certo público que acompanha suas postagens e que ela escolha pessoas para seguir que mantenham um certo padrão ligado tanto ao seu momento profissional quanto à sua formação e que pessoas que entram no twitter só para comentar sobre o jogo de futebol que estão acompanhando pela TV ou pelo rádio (não me pergunte como, mas tem gente que entende tudo o que locutores de futebol no rádio falam), obviamente a jornalista e o torcedor compõem grupos inteiramente distintos e que possivelmente se mantém tão distantes um do outro que o conteúdo que um consome raramente chegará ao outro.

Preciso contradizer com 1 detalhe algo que acabei de dizer: a experiência em redes sociais é altamente individualizada e os conteúdos sugeridos são baseados em anunciantes, então, dependendo dos interesses de algum anunciante, há chances de ambos verem a mesma coisa em algum momento, ainda assim a diferença de perspectivas, dadas as vivências de cada um, possivelmente vão gerar diferentes interpretações sobre a mesma coisa. Nestes tempos de extremismo político já vimos isso ocorrer várias vezes quando a mesma cena ridicularizada ou criticada pela esquerda é louvada pela extrema direita, mas deixarei questões como essa sobre comunicação para outro post, no momento quero me concentrar nessa noção claustrofóbica da bolha.

Entender a como a experiência do usuário é individualizada é também entender como se forma a própria geografia da rede social e para isso é preciso passar pelo modelo de negócio e o que o usuário representa para a empresa.

É importante reconhecer as diferenças de perfis de usuários para o twitter mostrar o quanto investir na plataforma vale a pena, da mesma forma que esses dados sobre, por exemplo, o público telespectador de algum reality importam para a produção do programa negociar com patrocinadores. Nesse cenário, interação importa muito e assim os usuários “trabalham” para as plataformas, são tanto seu parâmetro no jogo dos contratos quanto o “produto” a ser vendido, sua atenção está no centro de tudo, o que é expresso pelos seus comentários, retweets e curtidas, mas também por outras métricas como visualizações em tweets, quais tweets ficaram mais tempo na tela durante a rolagem da timeline, o mapa de calor usado para indicar onde o mouse mais ficou na tela, e vários outros, além dos que obviamente nem eu mesmo consigo imaginar. Ainda sobre os metadados coletados pelo twitter para entender quem são os usuários estão o aplicativo usado e o sistema operacional, o IP, dependendo do aplicativo e do SO, também a geolocalização, idioma, etc.

A necessidade de coletar essas informações todas nascem não apenas da segmentação necessária ao modelo de negócios, mas da compreensão que nem todos vão usar a rede social, e dos usuários, nem todos vão usar exclusivamente no Android, nem exclusivamente no IOS e nem exclusivamente num determinado navegador de internet. Há recortes geográficos e socioeconômicos onde estão os usuários e ainda assim há diferenças entre a frequência de uso dentro de cada segmento e cada perfil. Não é preciso muito esforço para entender que a nem todos faz sentido ou interessa ter uma conta no twitter e nem os que têm, precisam usa-lo de determinada forma. Twitter não serve apenas para ver notícias, ainda que os assuntos estejam lá nos TTs.

Uma confusão…

Sempre estou em meio a crises existenciais, então na graduação, como já falei antes quando citei a teoria pedagógica anarquista, me vi diante da seguinte dúvida: como é que eu sei o que é mesmo realidade? A realidade dos meus professores, em enorme maioria nascidos na classe média com pais também com formação universitária e não raramente formados na mesma área que eles. Eles que receberam um carro de presente dos pais ao ingressar numa universidade pública e que só começaram a trabalhar quando fizeram um estágio obrigatório e teve todo o apoio financeiro da família para só trabalhar mesmo depois de passar num concurso para professor universitário. O que é a realidade para eles e quais a diferenças para a minha realidade e dos meus colegas de curso, eu andava de ônibus e quando não tinha passagem, chegava a andar 5km para chegar à faculdade, eu precisava de pelo menos uma bolsa para continuar no curso, e os meus colegas que trabalhavam e por causa da distância e caótico trânsito nunca podiam jantar antes da aula (eu estudava à noite), todos nós chegávamos em casa entre 23:00 e 00:00, os que estavam empregados tinham de acordar pelas 5 da manhã e só tinham os 30 minutos ou 1h do almoço para estudar. Trabalhar e estudar é realmente difícil, todos acabaram abandonando curso, atualmente acho que só tem 1 aluno da turma ainda tentando concluir, admito que me arrependo de não ter dito o quanto eu admirava o esforço deles.

Mas voltando ao assunto….

É injusto os professores lidarem com os alunos nesse contexto se tomando como medida da realidade deles. Igualmente injustos são os discursos de determinada classe social privilegiada falar como que em nome de todas mas, logicamente, defendendo apenas os próprios interesses, e por fim podemos concluir também que é tão errado quanto tomar as redes sociais como medida da realidade, fazer isso é o mesmo que estar imerso numa infinita alucinação coletiva. O que não deixa de ser parcialmente verdade.

Infelizmente não encontrei pesquisas sobre o perfis de usuários de redes sociais no Brasil, mas dados mais gerais ou sobre os EUA, que é o país com maior número de usuários do twitter, pode nos dar algumas pistas sobre a real dimensão das redes sociais:

  • Pouco mais de 20% dos norte-americanos usam o twitter2, sendo que desses, menos da metade (46%) usam a rede social diariamente3.
  • Dados de 2019 mostraram que 80% dos tweets eram publicados por apenas 10% dos usuários, os que eram realmente ativos, e que a média de tweets do usuário comum era de apenas 2 tweets por mês4.
  • Essa mesma pesquisa de 2019 mostrou que os 69% dos 10% mais ativos publicaram sobre política enquanto, entre a grande massa dos 90% menos ativos, apenas 39% twitaram sobre o assunto.

Embora eu recomende ver as pesquisas cujos links coloquei como notas junto aos dados, uma nota do The Athlantic resumiu bem esses dados de 2019 dizendo que o twitter não é a América, dando destaque ao percentual de usuários com formação universitária e que ganham mais que a média dos cidadãos norte-americanos, e que finaliza ironizando como boa parte da elite do país dedica seu tempo a essa plataforma se questionando sobre o que pode dar errado com isso? Impossível ser mais direto.

Mas essa é a realidade deles, não é a nossa, possivelmente a nossa realidade de uso do twitter seja ainda elitizada pelos custos com internet, pelo processo de inclusão digital ter sido bem mais tardio, pelos equipamentos que usamos para acessar a internet (notebooks, tablets, smartphones, etc) terem um custo tão alto relativo ao salário mínimo enquanto grande parte da população sobrevive com 850 reais ou menos por mês 5.

Diante de tudo isso que eu disse me espanta quando vejo alguém dizer que o twitter é necessário para acompanhar notícias, que é onde todos estão, quase como se o twitter validasse a realidade e quem não o usasse fosse inteiramente alienado. Nada mais distante da realidade do que isso.

Mas como ficam os estudos sobre comportamentos de usuários no twitter? Ficam como estão, eles são um recorte populacional, se referem a grupos específicos de pessoas, se quiser alguma precisão estatística de verdade, faça como os institutos de pesquisa: pergunte as coisas diretamente às pessoas buscando ter alguma conformidade com os dados socioeconômicos e geográficos e use seus conhecimentos de estatísticas para ajudar no balanceamento e calcular uma margem de erro. Usar dados do twitter como se fosse da população inteira é repetir a mesma falácia daqueles que, na última eleição presidencial, disseram que as pesquisas mentiam e que fizeram enquetes no twitter e no facebook dizendo que “agora sim vamos fazer uma pesquisa sem manipulação”, da mesma forma que nesse cenário só vai conseguir ver o posicionamento político das pessoas que seguem determinado perfil, uma análise de dados de usuários do twitter se refere à vivência em rede daqueles usuários, seu grupo social e sua cultura, isso não significa que represente toda a população do país.

Sei que estou sendo até repetitivo e preciso esclarecer que não estou diminuindo a importância ou influência das redes sociais, só gostaria de tratá-las em sua real dimensão e atribuindo o poder de propagação de conteúdo aos seus verdadeiros atores e não encondendo eles sob essa figura abstrata, quase mítica, que parece ser toda uma multidão a que chamamos de “rede social”.



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References


  1. . https://we.riseup.net/assets/111810/angela+maria+souza+martins+a+pedagogia+libert%C3%A1ria+e+a+educa%C3%A7%C3%A3o+integral.pdf 

  2. . https://www.omnicoreagency.com/twitter-statistics/ 

  3. . https://www.pewresearch.org/internet/2021/04/07/social-media-use-in-2021/ 

  4. . https://www.pewresearch.org/internet/2019/04/24/sizing-up-twitter-users/ 

  5. Antes do link, uma observação: cuidado com os dados sobre médias de forma muito ampla, elas escondem que grupos que ganham muito, mas muito mesmo, puxam a média para cima escondendo os que ganham pouco - https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganha-mais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos